A Esquerda não tem Razão na Habitação
Depois de protestos por 24 cidades para resolver o problema da habitação, será que as propostas dos ativistas têm algum mérito?
No último fim-de-semana assistimos a mais uma manifestação em Lisboa devido à crise da habitação que juntou vários milhares de pessoas, que desceram a Avenida Almirante Reis em direção ao Rossio. As manifestações estenderam-se a 24 cidades de todo o país.
Mas o que é que os ativistas propõe para resolver o problema da habitação e será que isso vai ajudar a resolver o problema? Vou ignorar as propostas que pouco ou nada têm a ver com a habitação, no entanto, ideias como controlar os preços da alimentação, água e eletricidade ou acabar com os paraísos fiscais dão uma boa ideia do cariz ideológico da organização.
As propostas que dizem respeito ao imobiliário podem ser divididas em 3 grupos, que vou abordar em conjunto:
Controlo de preços
Redistribuir a Oferta
Reduzir a Procura de não-residentes
1 - Controlo de Preços
Acabar com os despejos, as desocupações e as demolições sem alternativa de habitação digna que preserve o agregado familiar na sua área de residência;
Baixar as rendas e fixar os valores, indexando aos rendimentos dos agregados familiares, nunca excedendo os 20%, e garantir a renovação dos contratos em vigor e a estabilidade residencial;
Baixar as prestações do crédito à habitação para um valor suportável nos orçamentos familiares, nos rácios internacionalmente estabelecidos, como é o caso das indicações da ONU, bem como fixar pelo banco público um spread máximo de 0,25%, e recorrer a medidas de urgência como as tomadas no tempo da pandemia nesta matéria;
Muitas destas propostas já foram experimentadas em vários sítios, algumas delas em Portugal. Por exemplo, Portugal congela rendas e proíbe despejos desde 1910. Dentro das grandes cidades esta tradição durou até aos anos 1980, mas mesmo hoje, os contratos anteriores a 1990 continuam congeladas.
É em parte por isto que digo que as rendas, mesmo em Lisboa, não são assim tão altas. Segundo os Censos de 2021, a renda média na capital é de 403€, 28% do salário médio lisboeta. Existem cerca de 27 mil contratos de arrendamento com rendas inferiores a 100€/mês. Então onde é que está o problema? Nos novos contratos.
É precisamente o constante congelamento não só dos contratos pré-1990, aliado ao congelamento esporádico de rendas que os novos contratos são tão onerosos. Se os senhorios sabem que vai ser um filme subir a renda, vão encurtar os prazos dos contratos, ou aumentar significativamente a renda no início do contrato, para se precaverem contra congelamentos.
Com uma renda média anual de 4836€, e um valor de casa médio de 320.000€ (80m2 x 4000€/m2), o rendimento que um senhorio tira do arrendamento é de apenas 1,5% por ano. Para termos de comparação, neste momento, emprestar dinheiro ao Governo Alemão, a 1 ano, rende juros de 3,7%, mais do dobro. Mesmo uma renda de 1400€/mês, muito alta para a realidade portuguesa, implica um rendimento de 5,3%, com todos os riscos e chatices que arrendar uma casa acarreta.
Com este tipo de retornos é natural que haja uma transferência de casas do mercado de arrendamento para a compra e venda, que não tem este tipo de constrangimentos. Isto está patente nos dados da OCDE que mostram que os preços das casas subiram 67% mais do que as rendas desde 2015. Portugal é o 4º país em que a disparidade é maior.
Baixar as prestações do crédito à habitação vai acabar por criar um problema semelhante ao do arrendamento, o controlo de preço ao crédito existente vai provocar uma queda de novos créditos. Os bancos vão preferir emprestar aos mutuários cujo risco é equivalente aos juros mais baixos da operação, ou seja, aos mais ricos.
É de certa forma um mito que existam famílias endividadas e com baixos rendimentos. - Mário Centeno
Segundo o BdP, os 40% mais pobres da população perfazem 19% do montante de crédito à habitação, enquanto que os 40% mais ricos perfazem 63%. Estes dados estão alinhados com o que Centeno disse há uns meses. Como tal, suprimir os juros que a banca cobra é uma forma de ajudar principalmente os mais ricos.
Em resumo, tentar controlar os preços da habitação vai resultar num benefício para quem já paga rendas bastante baixas e para quem já tem casa e por definição, é mais rico. Os prejudicados serão os mais jovens que não têm contratos de arrendamento nem capacidade financeira para pedir crédito ao banco para comprar casa, precisamente quem esteve a protestar.
2 - Redistribuir a Oferta
Promover medidas céleres e funcionais para integrar no mercado de arrendamento os imóveis devolutos das empresas imobiliárias, fundos de investimento e grandes proprietários existentes no país, incluindo os imóveis do Estado nesta situação;
Criar rapidamente mais alojamento estudantil e tomar medidas de urgência para garantir que todas as pessoas colocadas no ensino superior não abandonam o mesmo por falta de condições para ter acesso à habitação;
Aumentar a habitação pública, social e cooperativa de qualidade;
Na minha opinião, a Oferta é o principal problema do mercado imobiliário português. O facto de não existirem casas novas, significa que a Oferta está cada vez mais rígida e como tal o mercado está cada vez mais sensível a variações. Qualquer variação da Procura, por mais pequena que seja, vai provocar subidas significativas dos preços.
É por isso que é tão estranho que as únicas vezes que a organização fala de construção seja para rejeitar a hipótese. Existem duas razões para isto:
A organização acredita que existem casas suficientes para todos, mas que estão mal distribuídas;
A construção de novas casas é feita para os mais ricos e como tal, não beneficia quem precisa.
É por esta razão que se vê muita gente falar das 160 mil casas vagas na Área Metropolitana de Lisboa (10,6% do total), ou das 83 mil casas vagas na Área Metropolitana do Porto (10% do total).
Teoricamente, isto não devia acontecer. Se o preço por m2 em Lisboa é de 4000€ e o custo de reabilitação por m2 é de 1.700€, seria de esperar que um proprietário aproveitasse este diferencial de 2300€/m2, um retorno de 135%. Segundo o Censos das 48 mil casas vagas na capital, 22 mil estão no mercado de arrendamento ou venda. Sobram assim 26 mil casas verdadeiramente vagas. Curiosamente, a Vereadora da Habitação da CML diz que o Estado tem cerca de 26.600 habitações vagas em Lisboa.
No entanto, a aversão da esquerda à construção, não se fica por aqui. Outra razão é que a construção não resolve o problema porque as casas são construídas para os mais ricos. Isto é mentira. Um estudo recente mostra que à medida que os mais ricos vão para as casas novas, deixam para trás outras casas, para onde vão as pessoas de classe média, que deixam outras casas para trás para onde vão os mais pobres.
Outros estudos feitos na Nova Zelândia e EUA mostram a mesma tendência. Depois da cidade de Auckland duplicar os licenciamentos de novas casas, as rendas estagnaram em termos reais face a Wellington, que manteve o mesmo nível de licenciamentos e viu as rendas crescer mais 30% em termos reais até ao Covid. Nos EUA, curiosamente, o Minnesota, que licencia o dobro das casas novas dos restantes estados viu as rendas cair 20% em termos reais desde 2017. As rendas continuaram a subir para os restantes estados.
Tendo tudo isto em conta, concordo obviamente com a ideia de aumentar a Habitação Pública e de usar devolutos do Estado para ajudar a resolver o problema. No entanto, o foco em castigar o setor privado mostra mais uma vez o viés ideológico da organização.
3 - Reduzir a Procura de Não-Residentes
Acabar, de facto, com os vistos gold, com o estatuto do residente não habitual, com os incentivos para nómadas digitais e com as isenções fiscais para o imobiliário de luxo e para as empresas e fundos de investimento;
Rever as licenças para especulação turística: alojamentos locais, hotéis e apartamentos turísticos, garantindo a entrada desses imóveis no arrendamento urbano;
Apesar, de eu considerar que o principal problema é a baixa Oferta de habitação em Portugal, é inegável que o Turismo e os Vistos Gold magnificam o problema. Como disse acima, quando temos uma Oferta rígida (que não sobe nem desce), qualquer crescimento da Procura provoca uma subida desproporcional do preço.
É por isso que o argumento da IL de que os compradores estrangeiros são uma pequena parte da compra de imóveis, é inválido. Aliás, um estudo da FFMS mostrou que a proibição de AL em algumas freguesias lisboetas provocou uma queda imediata do preço da habitação.
Apesar disto, como não se constroem casas do dia para a noite, simpatizo com a ideia de reduzir a procura de não-residentes. Nesse sentido concordo com a proposta de acabar com Vistos Gold e isenções fiscais para residentes não habituais. Digo isto porque acredito que estas duas fontes de procura são relevantes o suficiente para subir os preços, mas irrelevantes para o panorama económico.
No entanto, não concordo com a maneira como o Turismo é atacado, por várias razões. Primeiro, o Turismo foi o que nos permitiu ajustar o nosso brutal problema de dívida externa que contribuiu para a chamada da Troika (quando as importações são maiores do que as exportações, temos que nos endividar para pagar a diferença). Atacar essa fonte de exportações, vai ter que resultar ou numa quebra das importações, ou num regresso ao endividamento externo.
A pergunta é então: será que é possível desviar a economia do Turismo sem perder receitas externas? Eu acho que sim, e é aqui que entra a diferença entre AL e Hotéis. Um hotel é uma forma muito mais eficiente de receber turistas do que AL. Apesar de haver metade dos hotéis do que alojamentos locais, estes albergam quatro vezes mais turistas do que AL’s.
Em vez de atacar o Turismo, do qual precisamos, a solução é simples e tão velha como o tempo: usar os impostos para capturar uma parte dos lucros da atividade e usar esse rendimento para construir habitação pública e conseguir baixar os preços das casas. Atualmente a taxa turística em Lisboa é de 2€/dormida, o que com 18 milhões de dormidas na AML nos dá uma receita de 36 milhões de euros.
Se a taxa subir para 6€, a receita cresce para 108 milhões, o que tendo em conta o custo de construção de 1700€/m2 e assumindo um apartamento médio lisboeta de 80m2, seria possível financiar a construção 800 casas por ano. Não é suficiente para resolver o problema, mas é uma ajuda sem matar a galinha dos ovos de ouro. Claro que isto são contas por alto, mas vocês percebem a ideia.
Recomendações da Semana
Efeito Bola de Neve, Alice Schroeder - Esta é a única biografia autorizada de Warren Buffett, a melhor mente financeira do mundo e mostra como o Oráculo de Omaha pensa sobre negócios, mercados e a psicologia humana.
Portugal grapples with legacy of colonial past, The Guardian - Portugal foi dos principais facilitadores do comércio de escravos, no entanto, ao contrário de outros países, temos muita dificuldade em reconhecer esse papel.
Excelente artigo! Como no meu trabalho tenho de identificar problemas e tomar decisões com base em dados, também tenho olhado para o problema da habitação começando por olhar por dados. Tal como explicaste, se olharmos para os dados, as afirmações que se fazem não são verdade. Neste tema da habitação, também tenho a ideia que a falta de oferta é o factor que está a ter mais peso - é multifactorial, certamente, mas a falta de oferta não está a permitir competição de preços ou dar alternativas às pessoas. Os mais ricos não trocam de casa porque vendem ao preço Z mas esse valor não consegue pagar uma melhor casa ao preço Y, então o mercado fica estagnado, porque nem se constrói ao mesmo ritmo, nem as pessoas deixam as casas livres para se poder ter alternativas.
Já o tema das rendas é interessante ver que falamos de um universo de 30% dos portugueses, porque os restantes têm casa provavelmente a crédito habitação; muitas dessas rendas são posteriores a 1990, portanto têm um valor bastante baixo. E a média são 400 euros na capital. Claro que haverá rendas a mais de 1000 euros e está difícil arrendar, mas também sou da opinião que havendo mais oferta ou outro tipo de incentivos para senhorios, o problema poderia resolver-se ao longo do tempo