A Tragédia do Turismo
Ninguém acredita que a restauração, alojamento e aviação (TAP) possam ser motores de desenvolvimento económico, mas é isso que está implícito quando apostamos no Turismo.
O Turismo foi um dos poucos pontos positivos da economia portuguesa da última década. Até ao Covid-19 ter rebentado, foi o Turismo que deu alguma margem de manobra. No entanto, nos últimos tempos, o papel do mesmo tem vindo a ser cada vez mais questionado.
Por um lado, temos as pessoas tipicamente associadas ao imobiliário e ao setor do Turismo, que alegam que o crescimento do setor trouxe emprego numa fase de desemprego alto, contribuiu para o investimento e receita fiscal. Do outro lado, estão as pessoas que acreditam que o Turismo tem mais consequências negativas do que positivas. Quem tem razão?
Serviços vs Indústria
Existem três grandes setores de produção numa economia: Agricultura, Indústria e Serviços. Uma tendência persistente desde a Revolução Industrial tem sido a transformação gradual de sociedades agrícolas em sociedades industriais, que se transformam em sociedades baseadas em serviços à medida que a economia se desenvolve.
Mas porque é que esta transformação é persistente e necessária? Devido ao potencial produtivo da agricultura e indústria, comparativamente aos serviços. Do lado da procura, à medida que os salários melhoram, a percentagem de rendimento gasta em serviços aumenta. Depois das nossas necessidades básicas estarem asseguradas, gastamos mais dinheiro em restauração, viagens e idas ao cinema.
Do lado da Oferta, à medida que a produtividade do trabalho aumenta mais nos setores da indústria e agricultura, estes ficam mais baratos relativamente aos serviços. Para atrair talento os serviços são obrigados a aumentar os salários ao mesmo ritmo dos outros setores. Como os ganhos de produtividade são menores, os custos de produção aumentam mais, ficando também mais caros para o consumidor.
Mas porque é que a produtividade dos serviços é menor? Vamos ignorar por enquanto os serviços de elevado valor acrescentado, como software. Que tipos de serviços são os mais comuns? Lojas, restaurantes, super-mercados, etc. A produtividade deste tipo de serviços está estruturalmente limitada.
O número de empregados por cliente manteve-se relativamente constante nos últimos cem anos. Os serviços precisam de pessoas e têm menos espaço para automatização. É por isto que o desenvolvimento económico bem sucedido tem passado quase sempre por um processo de industrialização.
Os ganhos de produtividade na agricultura e indústria permitem ganhos salariais e mais receita fiscal para educar a população, especializando-se em serviços de elevado valor acrescentado. São poucos os países que conseguiram saltar por cima da fase de industrialização com sucesso.
Além disso, a natureza física da agricultura e indústria alimenta a produtividade da economia como um todo. Uma fábrica precisa de fornecedores de matérias-primas, produtos intermédios e máquinas. Uma quinta precisa de tractores e fertilizantes. Estas necessidades alimentam indústrias adjacentes.
O mesmo não acontece numa empresa de software. Uma empresa de software bem sucedida pode não ter quase impacto nenhum na economia física à sua volta para lá dos salários pagos aos seus colaboradores.
China vs Índia
No início dos anos 1970, a China e a Índia tinham rendimentos per capita semelhantes, a rondar os $1.400/capita. Nas décadas seguintes, ambos os países embarcaram numa onda de reversão das suas economia altamente planeadas e os resultados são claros. O PIB/capita da China cresceu quase o dobro da Índia (930% vs 490%).
Ambas as histórias de desenvolvimento são positivas, mas porque é que a China teve um crescimento tão mais acentuado do que a Índia? Há várias razões, mas uma é a maneira como ambos os países aproveitaram a sua principal vantagem competitiva, a abundância de mão de obra.
Com muita mão de obra, mas pouco capital, o natural seria apostar em indústrias com necessidades de capital (investimento) baixas, com potencial de aprendizagem e ganhos de produtividade, com capacidade para absorver a enorme mão de obra de ambos os países. Mas estes seguiram caminhos diferentes.
A China seguiu o caminho das industrialização, primeiro com a indústria têxtil, enquanto que a Índia apostou nos serviços, como os call centers inicialmente, mas eventualmente foram progredindo para software, criando um dos clusters de software mais sofisticados do mundo.
No entanto, o caminho escolhido pela Índia tem um dilema. Só os serviços de alto valor acrescentado conseguem ter ganhos de produtividade sustentados, mas estes precisam de uma mão de obra qualificada. Os serviços de baixo valor acrescentado conseguem absorver mão de obra não qualificada, mas não têm potencial produtivo.
Ao apostar nos serviços a Índia teve que se contentar com serviços de baixo valor acrescentado e sem perspectivas de ganhos de produtividade, como call centers. A China conseguiu empregar uma porção cada vez maior da população em setores com ganhos de produtividade, resultando em salários mais altos e lucros para reinvestir nessas indústrias, catapultando a China para um patamar tecnológico muito elevado.
O Dilema de Portugal
Dentro de um cenário mais desenvolvido, Portugal está numa situação semelhante à da Índia. Dentro da UE e em comparação com os países da OCDE, Portugal é dos países com a mão de obra menos qualificada e, devido à integração na UE e no euro, teve que abandonar o seu processo de industrialização numa fase prematura.
Não é por acaso que o forte abrandamento do nosso crescimento económico se deu na viragem do milénio, quando o euro entrou em vigor e a China aderiu à OMC. Nós ainda não tínhamos desenvolvido uma indústria sofisticada o suficiente para deixar de competir com base no custo da mão de obra.
Adicionalmente, ainda não tínhamos acumulado capital humano suficiente para transferir uma parte substancial da população da indústria e serviços de baixo valor acrescentado, para serviços de elevado valor acrescentado.
Como tal, Portugal ficou preso numa armadilha do desenvolvimento. Não temos uma mão de obra suficientemente qualificada para criar e absorver emprego em serviços de elevado valor acrescentado, nem temos salários baixos o suficiente para conseguir competir industrialmente com países como a China, Alemanha e outros.
Em cima disto, não conseguimos reter o talento que criamos, nem proteger as nossas indústrias por forma a ganharem essas vantagens competitivas. Este colete de forças económico prende-nos ao nosso estado de desenvolvimento atual.
Turismo
O turismo enquadra-se perfeitamente dentro deste dilema. Apesar de falarmos de turismo como um todo, em que é que consiste realmente o turismo? Serviços de aviação, restauração, alojamento e pouco mais. Todos estes serviços de baixo valor acrescentado. O que é que significam ganhos de produtividade nestas indústrias?
Talvez a aviação seja a exceção no meio dos restantes, mas tendo em conta a prevalência de low-costs e as constantes lutas sindicais por parte de tripulantes e pilotos, é difícil ver como é que o futuro do setor pode ter ganhos de produtividade e salariais a favor da economia portuguesa.
A restauração e alojamento sofrem ainda mais deste problema. Como é que um restaurante fica mais produtivo com o passar do tempo? Ou um hotel? É muito difícil. Adicionalmente, os baixos salários associados a estas indústrias afetam indiretamente a receita fiscal e a capacidade do Estado de investir na educação que nos ajudaria a sair deste dilema.
Ou seja, estes setores não tem capacidade para duplicar a produtividade nos próximos 15 anos e como tal, também não têm capacidade para aumentar os salários de forma autónoma. Isto é ainda mais verdade quando há uma grande massa da população de onde recrutar. Como o trabalho não é qualificado, é indiferenciado.
Adicionalmente, o Turismo traz toda uma série de externalidades negativas. Os preços das casas sobem (ainda que não seja a principal causa), o que ficou provado num estudo recente, os transportes públicos ficam ainda mais sobrelotados e fica difícil para um residente desfrutar do lazer que uma grande cidade proporciona.
O que fazer?
Mas o que é que podemos fazer para sair desta situação? Ao nível municipal, a taxa turística devia subir de 2€ para 20€. Mesmo assumindo uma viagem extremamente low-cost de 200€, isto faria pouco para mudar a decisão de viajar para Lisboa mas ia aumentar significativamente as receitas dos municípios.
Lisboa recebeu cerca de 10 milhões de turistas em 2019, o que significa uma receita potencial de €200 M. Estas receitas deviam ser aplicadas para amenizar as externalidades negativas, principalmente em transportes públicos e habitação.
A nível nacional, deve haver um forte desincentivo do investimento imobiliário não destinado a habitação. Isto pode ser feito usando o parque habitacional do Estado, mas a melhor alternativa de longo-prazo seria uma forma de Imposto sobre o Valor do Terreno (IVT) que substituísse o IMI e uma série de outros impostos.
Conclusões
Para concluir, sou da opinião que os serviços de baixo valor acrescentado em geral e o turismo em particular, não são um caminho para o desenvolvimento. Se alguém dissesse que devíamos apostar na restauração, alojamento e aviação (TAP) como motores para o desenvolvimento económico ninguém levava a sério, mas é isso que está implícito quando apostamos no Turismo.
Quer isto dizer que o Turismo foi mau? Claro que não. Foi o Turismo que nos ajudou a ultrapassar a crise de 2011, mas a economia não é linear. Aquilo que funcionou no passado, não tem que ter futuro. Sim, o Turismo trouxe emprego e investimento, mas emprego pouco qualificado e investimento em setores não transácionáveis e pouco potencial produtivo, uma das causas do nosso fraco crescimento no século XXI.
Convém dizer que a culpa de tudo isto não é dos estrangeiros, nem das pessoas que aproveitam a nossa “vantagem” competitiva para fazer dinheiro. A culpa é de um acumular de decisões políticas e económicas que moldam os incentivos para que os agentes se comportem desta forma.
Recomendações
Crise e Castigo e o Dia Seguinte, Fernando Alexandre e Luís Aguiar-Conraria - Este livro expõe de forma muito clara as várias causas para o fraco desenvolvimento português desde a viragem do século. Sem surpresa, a aposta no imobiliário foi uma das razões.
The Spiritual Benefits of Material Progress, The Roots of Progress - A narrativa de que o nosso bem estar espiritual se opõe ao progresso económico é cada vez mais comum. Neste artigo, o autor explica como essa ideia não podia estar mais longe da realidade.